Maria do Carmo Cafede
M.ª de Fátima Arnaud
M.ª de Fátima Santos
M.ª de Fátima Arnaud
M.ª de Fátima Santos
fonte: http://csgois.web.interacesso.pt/MGFV001MASTER/textos/12/16_texto.html
Introdução
O conceito de consulta no domicílio evoluiu, passando a ter conotação social para além de médica. Define-se como uma consulta directa, efectuada na casa do paciente, quando este não pode deslocar-se ao gabinete médico. O declínio do número de consultas no domicílio foi universal, tendo Portugal um dos valores mais baixos. A justificação da sua realização é cada vez mais pertinente devido a aspectos epidemiológicos, económicos e deontológicos.
É necessário garantir o cumprimento dos critérios para a sua realização, já que possibilitam o desenvolvimento de tarefas específicas no âmbito da MGF, ao cuidar do paciente no seu ambiente próprio e do seu cuidador.
Há que criar, e manter, incentivos que visem estimular a prática de consultas no domicílio, nomeadamente formativos, honoríficos e remuneratórios.
Quase não há investigação sobre este tema. A prática da continuidade de cuidados (como a conhecemos da definição de cuidados de saúde primários), terá que ser reformulada, criando-se outros serviços alternativos e/ou complementares.
A autonomia do paciente, do ponto de vista ético, pode entrar em conflito com as necessidades do cuidador e os recursos comunitários disponíveis. A comunidade deve apoiar a componente médica dos cuidados no domicílio.
O problema na prática clínica
Por consulta no domicílio entende-se a consulta directa, programada ou espontânea, efectuada na residência do paciente (a sua casa, de um amigo, hotel, quarto, etc.), onde o seu médico de família avalia o seu estado de saúde, o aconselha e trata, para satisfazer uma necessidade de cuidados assistenciais e devido a uma impossibilidade, temporária ou permanente, de se deslocar ao gabinete médico (situado no Centro de Saúde ou não). O modelo de consulta no domicílio evoluiu com o desenvolvimento dos cuidados de saúde primários, deixando de ter conotação exclusivamente médica, para ser um processo de prestação de cuidados continuados e integrais, através de uma equipa multidisciplinar (incluindo grupos profissionais «novos»), com tarefas médicas, sociais e outras, constituindo um conceito mais alargado, os Cuidados no Domicílio.
Vários estudos referem o declínio das consultas no domicílio nas últimas três décadas, de um modo quase universal. O Quadro I resume os principais factores condicionantes. O caso português é único, no contexto europeu, sendo referido como um dos países com valores mais baixos de consultas no domicílio. Os motivos identificados relacionam-se basicamente com o enquadramento legal. De acordo com o «Regulamento dos Centros de Saúde», cada médico era o único responsável pelos critérios (individuais) da realização, ou não, das consultas no domicílio. Por cada quatro solicitações de consulta no domicílio só uma era satisfeita, podendo ainda ser efectuada no serviço de urgência hospitalar, serviço de atendimento permanente ou centro de saúde. O mesmo regulamento não considerou esta actividade passível de ser remunerada, condicionando a disponibilidade dos médicos de família. Por outro lado, o aparecimento dos serviços de atendimento permanente e seus congéneres, veio permitir o acesso ao SNS em «curto-circuito», sobretudo durante a noite, fins-de-semana e feriados. Num determinado ponto da evolução do Serviço Nacional de Saúde, em vez do investimento ter sido feito na assistência domiciliária, foi feito nos serviços de atendimento permanente e não houve coragem política para o assumir e reverter o processo.
Quadro I
Factores condicionantes do declínio das consultas no domicílio
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Factores | Características |
Sócio-económicos | - aumento do n.º de carros particulares, permitindo maior mobilidade; - uso generalizado do telefone, facilitando a obtenção de conselhos médicos, sem sair de casa; - o repouso deixou de ser “absolutamente” terapêutico. |
Tecnológicos | - concentração de meios técnicos nos hospitais; - sucesso da vacinação e da antibioterapia, diminuindo a incidência e a duração das infecções agudas |
Dos Serviços Nacionais de Saúde | - dispersão geográfica das práticas clínicas |
Do Médico | - actividade incómoda; - consumidora de tempo; - desorganizadora da prática clínica |
Nos nossos dias, são várias as razões que justificam a sua importância:
1- socio-demográficas, com o envelhecimento da população;
2- epidemiológicas, com o aumento da sobrevida às doenças crónicas e invalidantes (SIDA, cancro, grandes poli traumatizados);
3- económicas, com a necessidade de reduzir custos de hospitalizações;
4- tecnológicas, com a possibilidade de se deslocarem aos domicílios tecnologias, quer diagnósticas quer terapêuticas;
5- psicológicas e éticas, reconhecendo aos pacientes o direito de permanecerem no seu ambiente familiar, mesmo gravemente doentes;
6- deontológicas e profissionais, em que o médico de família não deverá deixar de prestar cuidados assistenciais aos seus pacientes quando estes estejam em suas casas e tendo que cumprir tarefas no âmbito do seu perfil profissional.
Já na era de Hipócrates, se fazia menção do interesse de avaliar o paciente e o seu meio social …
Avaliação
Apesar de existirem critérios facilitadores da decisão de realizar, ou não, consultas no domicílio (ver Quadro II), esta pode ser influenciada por factores não médicos. Por exemplo, a atitude do médico perante a consulta no domicílio – quanto mais favorável, maior é o número de domicílios realizados; a necessidade, cada vez mais actual, de o médico se defender perante os pedidos urgentes.
Quadro II
Critérios para a realização de consultas no domicílio
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1. Doença crónica instável ou exacerbação aguda de doença crónica. |
2. Doença aguda episódica; por ex.: d. infecto-contagiosa. |
3. Pacientes, após alta hospitalar, que necessitem de continuação de cuidados. |
4. Pacientes acamados ou com incapacidades diversas. |
5. Recém-nascidos e puérperas, sobretudo em maior risco social. |
6. Pacientes com doença oncológica avançada ou em estadio final de outras doenças crónicas. |
As consultas no domicílio caracterizam-se por particularidades interessantes no âmbito da MGF:
1- desenvolvimento de uma relação médico-paciente mais gratificante;
2- possibilidade de diagnosticar mais problemas de saúde do que no gabinete médico;
3- observação directa dos valores e da história da família;
4- avaliação funcional do paciente, através das actividades de vida diária, mais correcta;
5- identificação das condições de habitação e de eventuais perigos;
6- revisão da medicação, inclusive da que se encontra «espalhada» pela casa;
7- avaliação directa da organização e adaptação da família e dos seus recursos, ao momento actual;
8- avaliação do cuidador.
Por cuidador, entende-se alguém que presta cuidados ao paciente, geralmente um filho adulto, o cônjuge, um irmão ou outro parente. Da totalidade dos cuidados que o paciente necessita, cerca de 80% são executados pelo cuidador, distribuídos pelas seguintes funções: higiene, alimentação adequada, administração de medicamentos, estímulo da autonomia, prevenção de acidentes, apoio afectivo, evitar a depressão e a frustração, potenciar o apoio social e institucional. Se acrescentarmos que, mais ou menos, um terço dos cuidadores trabalha fora de casa e a maioria presta cuidados entre 1 a 4 anos, é fácil compreender o potencial para o «burnout», a raiva e a culpa. Chegam mesmo a dividir a sua vida no «antes» e no «depois»… Não solicitam cuidados médicos para si e, geralmente, não reconhecem as suas necessidades de apoio. Em consequência podem surgir duas situações diferentes, o «abuso» dos pacientes, traduzido por agressões físicas e negligência de cuidados, e o síndroma do cuidador, que se manifesta por fadiga, ansiedade e baixa da auto-estima, sendo mais frequente no cônjuge (é mais vulnerável pela idade e por patologias próprias), e em cuidadores de pacientes com deterioração cognitiva. São factores desencadeantes:
1- sexo feminino e ‘menor’ idade;
2- isolamento social;
3- falta de apoio e/ou críticas por parte de outros membros da família;
4- perca de perspectivas de futuro (trabalho, envolvimento social);
5- personalidade do cuidador, depressivo ou ansioso, baixa auto-estima, obsessivo, paternalista;
6- relação prévia com o paciente, conflituosa ou ambivalente;
7- situação do paciente, com grandes alterações do comportamento;
8- falta de apoio de estruturas comunitárias;
9- relação conflituosa do cuidador com os serviços de saúde.
Cabe ao médico de família estar atento e actuar de acordo com os recursos disponíveis.
Possibilidades de intervenção em MGF
Para que as consultas no domicílio possam ser eficientes há a considerar as competências técnicoprofissionais específicas do médico de família. Estas não são estáticas e têm sofrido alterações ao longo do tempo. No Quadro III estão resumidas as mais úteis, actualmente.
Quadro III
Competências técnico-profissionais do médico de família
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Atitudes | Conhecimentos | Aptidões |
- adquirir flexibilidade e sensibilidade no ambiente do paciente; - desenvolver capacidades para recolher hist. Clín. e efectuar ex. objectivo no domicílio, mantendo o respeito e a confidencialidade, por ex. realizar exame ginecológico; - compreender e a aceitar a comunidade onde se trabalha; - compreender o papel e a importância de uma equipa multidisciplinar nos cuidados domiciliários. | - desenvolver capacidades para diagnosticar no local (sempre que possível), e prescrever terapêutica e meios auxiliares de diagnóstico apropriados, tendo em conta a patologia e os recursos disponíveis; - reconhecer a necessidade de transferência, em situações agudas, para unidades de urgência ou de internamento; - conhecer os recursos comunitários e como ter acesso a eles (grupos de auto-ajuda, voluntários, etc.); - conhecer o ‘plano de alta’, em conjunto com toda a equipa de cuidados; - desenvolver e aplicar os princípios dos cuidados paliativos no domicílio. | - avaliar actividades de vida diária no domicílio; - avaliar o ambiente familiar e a sua segurança; - efectuar um exame objectivo, completo, na casa do paciente; - usar tecnologia apropriada no domicílio como O2, ECG, etc.. |
Perante as necessidades crescentes de consultas no domicílio e as dificuldades da sua implementação, justificam-se estratégias «fortes» que produzam modificações a curto e médio prazo, quer sejam formativas, honoríficas ou remuneratórias. A formação é reconhecida como um dos meios mais eficientes na mudança de atitudes, seja ela pré ou pós-graduada. O reconhecimento, pelos pares e pelas instituições, da importância dos cuidados no domicílio como parâmetro de qualidade, também pode trazer alterações de comportamentos. A remuneração (a sua ausência) foi sempre referida, pelos médicos de família, como um dos principais obstáculos à realização das consultas no domicílio. Com a existência legal do «Regime Remuneratório Experimental», esta actividade passa a ser paga ao acto, pela primeira vez em Portugal, entre valores mínimos e máximos. Embora seja uma mudança estratégica importante não pode ser a única e há que ajustá-la à diversidade de práticas existentes.
Erros e limitações
As consultas no domicílio são objecto de pouca investigação, a nível internacional e nacional, impossibilitando conhecimentos actualizados sobre esta área. É corrente o erro de considerar os cuidados no domicílio como sendo de qualidade inferior, não merecendo a atenção devida por parte das entidades pagadoras. Quer o SNS quer os «privados» devem explicitar, nos seus contratos, os termos e os critérios de realização das consultas no domicílio, bem como o sistema retributivo.
Devido à escassez de recursos humanos e às inúmeras solicitações dos pacientes, a continuidade dos cuidados assistenciais é, hoje em dia, um mito. Devem existir serviços complementares (e/ou alternativos?), em relação ao horário do médico de família, que assegurem a continuidade. Terão que basear-se nos princípios dos cuidados de saúde primários, assegurar a prestação de cuidados com qualidade, sobretudo ao nível dos registos para permitirem a comunicação entre todos os elementos da equipa. Estudos comparativos, entre estes dois modelos, mostram que existem diferenças no «processo» (rapidez de resposta ao pedido, tipo de prescrição ou aconselhamento), mas não nos resultados de saúde, apesar da satisfação dos utentes ser mais baixa, quando não eram atendidos pelo seu médico de família.
Os aspectos éticos das consultas no domicílio, quase sempre esquecidos têm que ser considerados, em todas as situações. A necessidade de um equilíbrio razoável entre a autonomia do paciente, as condicionantes do cuidador e os recursos disponíveis, podem originar decisões nem sempre idênticas às tomadas no gabinete médico. Ou seja, a recusa de um paciente em ser internado pode ser ignorada, caso o seu cuidador esteja exausto e não haja recursos comunitários suficientes para os seus problemas.
As comunidades a nível local deverão criar e desenvolver apoios diversos (ajuda na higiene pessoal e da casa, fornecedores de alimentos confeccionados, prestadores de serviços terciários - «bancos», etc.), para complementar as tarefas médicas dos cuidados ao domicílio.
Pontos práticos a reter
1 - As consultas no domicílio são necessárias.
2 - Há que criar e manter incentivos fortes.
3 - Existem critérios de inclusão a cumprir.
4 - Devem existir soluções com qualidade para assegurarem a continuidade de cuidados.
5 - Há que ter especial atenção ao papel do cuidador e aos aspectos éticos.
6 - A comunidade tem que participar na prestação dos cuidados no domicílio.
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