Ouvir o que as pessoas querem dizer nas que podem ser as suas últimas palavras é complexo

Maria Loureiro é enfermeira no CHUC na UCI Covid do Hospital dos Covões. Em entrevista ao Observador fala sobre as suas experiencias. Foram extraidas algumas partes:

“Sendo possível, a pessoa fala sempre com o familiar que lhe diz mais ou que naquele momento é a pessoa com quem precisa de falar. Já ouvi de tudo nessas conversas, desde ‘o meu pin do cartão é x y e z’; a ‘se precisares de ir buscar dinheiro está na caixa não sei quê’; ou ‘olha, não quero que seja a tua mãe a ouvir as minhas últimas palavras, portanto peço-te que tomes conta dela'”, revela.

As outras histórias que acompanhamos todos os dias — que são as histórias das pessoas que lá estão, as despedidas das famílias, as dúvidas sobre se vão sobreviver a isto — nos tocam; fazer uma projeção de alguém que podia ser eu foi talvez a história que, até hoje, teve mais impacto pessoal em mim, e que trouxe mais para casa.

Códigos do banco e atos de amor: aquilo de que as pessoas falam na hora da despedida

Essa questão da despedida das famílias é uma das vossas novas funções; fazer a ponte entre doentes e famílias que não as podem visitar. Tentam que essa chamada, antes de as pessoas serem colocadas em coma induzido e ventiladas, seja sempre feita?

Sim. Apesar de todo o contexto, na unidade de cuidados intensivos onde estou e na maioria dos serviços Covid da instituição, temos tido sempre essa preocupação. Sendo possível, a pessoa fala sempre com o familiar que lhe diz mais ou que naquele momento é a pessoa com quem precisa de falar. Já ouvi de tudo nessas conversas, desde “Olha, o meu pin do cartão é x y e z”; a “se precisares de ir buscar dinheiro está na caixa não sei quê”; ou “olha, não quero que seja a tua mãe a ouvir as minhas últimas palavras, portanto peço-te que tomes conta dela”. Claro que, às vezes, a situação limite não permite, mas sempre que é possível tentamos facilitar. Felizmente temos um tablet e um telemóvel dentro das unidades, que nos permitem fazer com que a pessoa possa falar. E a noção que temos é de que, quando as pessoas conseguem conversar com quem escolheram, todo o processo de entubação parece até mais tranquilo. Sendo que se este momento é marcante para todos, não é de todo menos marcante quando conseguimos fazer o resto, que é, no final dos dias de entubação de que a pessoa necessita, vê-la a falar pela primeira vez com a família.

Mas aí é marcante de outra forma.
Sim, é marcante pela positiva, mas não é de todo menos importante para as pessoas. É complexo. Ouvirmos aquilo que as pessoas querem dizer naquelas que podem ser as suas últimas palavras, ou naquelas que elas acham que podem ser as suas últimas palavras. É difícil às vezes.

Como é que se lida com isso? Ouvi-a descrever estas situações e fiquei arrepiada. No dia a dia, conhecendo as pessoas, consegue manter-se impassível a ouvir essas despedidas? Porque, às tantas, sejam mesmo para sempre ou não, é o que são…
Acho que aí a equipa ajuda muito. Todos nós temos os nossos momentos. Há pouco perguntava-me qual foi a situação que me marcou mais; para mim, foi aquela colega, mas para outros colegas se calhar foi alguém que era parecido com o pai, ou que até conhecia porque vive perto. Quando alguém está a ter maior impacto a ouvir estas despedidas, há alguém que se apercebe: “Ok, tu também estás a precisar de uma palavra. Vamos ali fora. Quando tivermos tempo para sair, vamos conversar um bocadinho”. Isto ajuda muito, porque todos nós temos dias e temos momentos e gerimos de forma diferente estas situações. E todos nós temos um sentido de cuidar do outro, não só para as pessoas que estão na cama, mas também para os nossos pares. Isso tem ajudado muito. Além da boa disposição que tentamos criar — temos sempre aquele momento do dia, à entrada, em que dizemos umas piadas para desanuviar um bocadinho a sensação de pressão —, temos aquele ombro de que precisamos. E se for preciso chorar vamos chorar, porque não somos máquinas. E temos de ter aqueles 5 ou 10 minutos para chorar e gerir isto. Trabalho numa unidade de cuidados intensivos de cirurgia lidar com a morte ou com despedidas não é o habitual, as pessoas vão para fazer o tratamento de um problema e nós ajudamo-las a regressar a casa. Aqui temos dúvidas sobre isso, portanto aquelas palavras que as pessoas dirigem às suas famílias são mesmo de despedida. Sejam, ou não, para sempre. Este limbo entre a vida e a morte está muito mais presente. Outra coisa que funciona muito, a par desta ajuda de equipa, é a inteligência emocional. Temos dias bons e temos dias maus; pessoalmente tento entrar sempre com uma perspetiva muito positiva: as pessoas precisam de mim e tenho de estar para aquilo que elas necessitam. Se há dias que são difíceis e se há palavras que às vezes são difíceis de gerir? Sim. Mas, lá está, temos um suporte. E temos também uma liderança que nos ajuda, quando há uma perceção da nossa líder de que já estamos a atingir um determinado limite…

"Se for preciso chorar vamos chorar, porque nós não somos máquinas. E temos de ter aqueles 5 ou 10 minutos para chorar e gerir isto. Trabalho numa unidade de cuidados intensivos de cirurgia e lidar com a morte ou com despedidas não é o habitual, as pessoas vão para tratar um problema e nós ajudamo-las a regressar a casa. Aqui temos dúvidas sobre isso, portanto aquelas palavras que as pessoas dirigem às suas famílias são mesmo de despedida. Sejam, ou não, para sempre"

Há um time-out?
Há um time-out e há, sobretudo, palavras que nos ajudam. Temos um grupo de WhatsApp, a que a nossa enfermeira gestora faz questão de pertencer. Quando percebe que nós estamos a vacilar um bocadinho manda-nos aquela mensagem de que precisamos.

Estava a falar nessa possibilidade da morte, que desde novembro está sempre presente. Tem ideia de quantas pessoas já perdeu?
Tenho ideia de quantas pessoas já perdi, sim. E posso-lhe dizer que na semana em que comecei funções perdi duas pessoas. No total destes meses perdi sete pessoas — sete pessoas que estavam mais comigo, obviamente e infelizmente, os números são superiores a isto. Inclusivamente sei o nome da maioria delas.

Sabe o nome, sabe o que faziam, de onde eram… Nas unidades de cuidados intensivos nem toda a gente está ventilada, correto? Há quem esteja consciente e a aperceber-se daquilo que se passa?
Sim, e mesmo ventiladas temos pessoas que são capazes de comunicar connosco e de referenciar o seu desconforto. Tivemos um senhor recentemente, que supostamente estava num coma induzido, mas abriu os olhos quando lhe estava a fazer reabilitação. Até partilhámos em equipa que tínhamos de o pôr mais a descansar, mas ele, muito sereno, muito tranquilo, esteve a colaborar comigo nos 45 minutos que estive a trabalhar na reabilitação respiratória e motora. E no final dizia que éramos uma equipa fantástica. Foi uma situação de sucesso. Já na fase a que chamamos desmame ventilatório, em que, apesar de ainda ventilado, já estava com uma ajuda minor, fez uma vídeo-chamada com as filhas e a esposa.

"Dissemos à esposa: 'Olhe, o seu marido quer falar consigo, mas não está capaz de falar, está só capaz de comunicar. Aquilo que tiver para lhe dizer, diga-lhe; faça-lhe só perguntas a que ele consiga responder sim ou não com os acenos de cabeça'. A senhora já chorava antes de chegarmos com o tablet ao pé dele. Foi extraordinário, claro que a primeira coisa que as pessoas perguntam é 'Estás bem?'. E as lágrimas escorriam pela cara do senhor e ele dizia 'Sim, sim, sim'"

Como é que foi essa chamada, lembra-se? O que é que as pessoas dizem numa altura dessas?
Foi extraordinário. Nestas questões temos sempre de preparar a família, ou seja, dizer-lhes que não vão ouvir o seu familiar. Dissemos à esposa: “Olhe, o seu marido quer falar consigo, mas não está capaz de falar, está só capaz de comunicar. Aquilo que tiver para lhe dizer, diga-lhe; faça-lhe só perguntas a que ele consiga responder sim ou não com os acenos de cabeça”. A senhora já chorava antes de chegarmos com o tablet ao pé dele. Foi extraordinário, claro que a primeira coisa que as pessoas perguntam é “Estás bem?”. E as lágrimas escorriam pela cara do senhor e ele dizia “Sim, sim, sim”. Obviamente que foi um momento muito emocionante, pela positiva. E se calhar foi aquilo que faltava para o senhor acabar de ser destubado e ter alta para a enfermaria e ficar muito bem. Ainda que haja uma visão um bocadinho mais mecanizada dos cuidados intensivos e que pareça que a questão relacional humana não funcione tanto, a verdade é que é possível e que nós o fazemos. Na parte da reabilitação, a pessoa ser capaz de colaborar connosco, ajuda em todo o processo, porque a pessoa sente que é capaz e que afinal está melhor. Independentemente de toda a questão terapêutica, de todas as intervenções que facilitam a melhoria, ela sentir que está a melhorar e que as coisas estão a evoluir é outra ajuda, é outra parte do cuidado. Em termos de reabilitação cognitiva isto também funciona muito, vamos à história prévia, para percebermos e os ajudarmos a orientarem-se, e vamos perguntando o que é que faziam. Muitas das vezes não sabem em que dia estão, se é dia se é noite, o que lhes aconteceu… Isto ajuda-os a reintegrarem-se naquilo que era a sua vida.

Estamos a falar de doentes de que idades em média?
Na fase inicial, no final de novembro, início de dezembro, a faixa etária estava mais nos 60 e tal anos. Aquilo que nos aconteceu foi que as pessoas internadas passaram a ser cada vez mais jovens, com médias de idades mais para os 40 e poucos anos. Portanto, muitas pessoas com 45, 44, 48, 33, 51… Depois mesmos os de 50, tinham 50 e pouco.

E são casos que vocês percebem à partida que têm excesso de peso ou doenças prévias ou nem por isso?
Nem por isso. E isso foi o que a determinada altura nos fez pensar muito enquanto equipa, porque se numa fase inicial se associavam estes casos graves à questão da idade, da obesidade ou das comorbilidades, de repente começámos a ter pessoas jovens que o máximo que podíamos dizer é que teriam excesso de peso, e já assim a utilizar o IMC [Índice de Massa Corporal] como baliza. Eram pessoas saudáveis, que não tinham comorbilidades nenhumas, que foram infetadas com Covid e que de repente estavam nos cuidados intensivos.


Um pouco tarde demais, não é?
Acho que tem a ver com a questão cultural, as pessoas acham que só acontece aos outros, portanto vão vivendo as suas vidas nessa lógica. Não consigo compreender como é que, com tanta informação, com tanta tentativa de sensibilização, as pessoas continuam a incumprir. Quero acreditar que às vezes pode ter a ver com uma questão de saúde mental, ou seja, o facto de estarem fechadas e em confinamento começa a afetar-lhes a saúde mental e as pessoas precisam de sair e arejar, e depois, quando o fazem, esquecem-se de que têm de continuar a ter cuidados. Aqui perto de casa tenho uma zona que tem uma farmácia, uma padaria e um restaurante que faz take-away. No sábado passei por lá de carro, porque vinha a sair do serviço, e eram filas de pessoas. Lembro-me de que na primeira vaga nas redes sociais as pessoas diziam que tinham feito pão em casa, porque assim já não precisavam de sair. Acho que agora estão a sair porque também precisam, depois não têm é o resto, não têm os cuidados necessários para impedir a propagação. Não quero acreditar que as pessoas fazem isto de ânimo leve, porque se estão a borrifar, quero acreditar que o fazem para se protegerem um bocadinho daquilo que vai ser, para mim, uma segunda pandemia, que é o impacto na saúde mental de todos, ou pelas questões de desemprego, ou pelas questões de teletrabalho com filhos em casa. Com a minha família, com os meus padrinhos e os meus pais, tento fazer vídeo-chamadas todos os dias e depois ponho-os todos a falarem um com os outros. Porque tenho noção de que as pessoas estão a dar por si quase a falar para as paredes. Quero acreditar que não é por mal que a população portuguesa não tomou ainda esta pandemia como uma possibilidade de morte para si ou para a sua família.




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